terça-feira, 3 de agosto de 2010

A origem legal do zika vírus - José Souto Tostes

Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil. A frase da saúva é atribuída a Auguste de Saint-Hilaire, naturalista e biólogo francês, que visitou e percorreu nosso país alguns séculos atrás. Segundo ele, ao retornar à França, o maior problema do país era a formiga conhecida como saúva, grande e negra.

Não quero fazer paralelo entre o que ele disse naqueles tempos com a proliferação do mosquito conhecido como aedes aegypti, mas com frase que usou as expressões acima para parafrasear sobre a burocracia e a dificuldade que temos em lidar com nossas leis, a diversas interpretações e análises dadas a uma mesma norma jurídica. Aliás, que se abra um parêntesis, advogar com eficiência no Brasil é bem complicado.

Voltemos à frase da saúva, que foi parafraseada para se afirmar, que “ou o Brasil acaba com a burocracia ou a burocracia acaba com o Brasil”. Segundo consta, essa frase foi usada numa campanha do governo, na década de 40.

A histórica jurídica do combate à dengue nos remete à antiga SUCAM, órgão que resultou da fusão do Departamento Nacional de Endemias Rurais (DENERu), da Campanha de Erradicação da Malária (CEM) e da Campanha de Erradicação da Varíola (CEV) e que hoje faz parte da FUNASA.

A SUCAM era, em suma, um órgão público Federal, que atuava junto aos municípios brasileiros, onde, seus representantes cuidavam das campanhas de combate a endemias. Eles foram esvaziados e os seus serviços foram passados, in continenti, para as municipalidades. Na época não existiu preocupação, por parte do Governo Federal, no início do novo século (ano de 2000), de repassar às prefeituras, a expertise no trato com o combate a essas verdadeiras pragas urbanas.

Sou testemunha da ocorrência desse desmonte da SUCAM e da entrega, sem qualquer critério, de suas antigas funções, aos municípios, que não detinham expertise, nem recursos para tocar esses projetos.

A bem da verdade, ato seguido, o Governo Federal, após muitas e intensas brigas, estabeleceu, com as municipalidades, os primeiros convênios para implantação dos programas municipais de combate a endemias. Eram convênios que estabeleciam, na mesma época, a criação dos programas denominados Médicos de Família, hoje chamados de Estratégia de Família ou algo parecido. Esses convênios foram firmados com a determinação, às prefeituras, para que elas contratassem, de forma temporária, os prestadores de serviço que atuariam no combate às endemias, sem qualquer critério ou obrigatoriedade de preparação ou requisito técnico.

Em apertada síntese, o Governo Federal livrou-se do combate às endemias e transferiu, como vem transferindo há vários anos, suas responsabilidades para Estados e municípios brasileiros.

Algumas variantes jurídicas precisam ser anotadas, para chegarmos ao ponto principal. Primeiro: os convênios estabeleciam que os trabalhadores deveriam ser contratados para atuação temporária, devendo os mesmos receberem a remuneração com base nos valores dos respectivos convênios. Dificuldades imensas para contratação temporária. Isso porque a Constituição Federal prevê a contratação temporária para casos de curta duração. Será que o governo imaginou algum dia que o combate às endemias seria de curta duração?

Com certeza que sim, pois esses convênios eram renovados ano a ano e nenhuma prefeitura, em sã consciência, devidamente assessorada juridicamente, cometeria o erro de contratar trabalhadores sem a garantia do repasse dos valores no final do mês. O risco era o convênio não ser renovado e o quadro com os servidores, que já teriam inúmeros direitos, ficar ocioso.

Nessa mesma época entrou em vigor a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, que limitou os gastos dos governos em percentuais sobre a suas receitas. O segundo dilema surgiu: como contratar servidores efetivos e majorar as folhas de pagamento? Sendo que na verdade, esses servidores estariam atrelados a um convênio excepcional que não se sabia o tempo que durariam.

A terceira dúvida era a seguinte: os gastos de pessoal com esses agentes deveriam constar dos percentuais da lei de responsabilidade fiscal para cálculo dos gastos com pessoal?

Por mais que queira parecer que os gestores municipais são incompetentes e corruptos, no Brasil tivemos e temos bons gestores, sempre preocupados com a situação de suas contas e o fortalecimento de seus municípios. Vi gente desesperada diante desse dilema. Não sei precisar por quanto tempo, mas muitos municípios não tinham equipes de combate a endemias montadas por dificuldades na contratação desse pessoal. E quando tinham, eram despreparadas, sem equipamentos e sem a menor liderança.

E o complicador maior no caso, eram os desentendimentos entre os fiscais da lei, especialmente os órgãos do Ministério Público (Estaduais de Tutela Coletiva, Federal, e do Trabalho), bem como, o desentendimento reinante entre a Justiça e os Tribunais de Contas. Numa época, apenas para exemplificar, haviam entendimentos diferentes desses órgãos de controle acerca da forma de contratação desse pessoal tão importante, como verificamos agora na hora da emergência e do caos.

Enfrentando essas enormes dificuldades, alguns municípios optaram por contratar os serviços por meio de organizações não-governamentais, no início foram as cooperativas, depois as OSCIP´s e hoje, muitos contratam por meio das OS´s. Essas empresas passaram a ser chamadas de terceiro setor e a jurisprudência nos tribunais é das mais fartas e díspares possíveis.

Anote-se, ainda, que algumas prefeituras optaram por contratar via concurso público, com as dificuldades geradas por alguns convênios que estabeleciam obrigatoriedade do candidato residir no bairro em que fosse trabalhar, especialmente para o programa Médicos de Família.

Alguns adotaram a contratação direta, via processo seletivo, cujo regramento brasileiro é por demais pífio, gerando inúmeras dúvidas, ações de improbidade e toda espécie de dificuldade possível.

Essa modalidade de contratação temporária não era permitida para longos períodos, segundo o entendimento de alguns tribunais. Dessa forma, era impossível o contratado ser treinado ou adquirir experiência, pois ficam nos quadros públicos por no máximo 2 anos. E quando essa experiência, esse investimento no capital humano com treinamento ocorria, o contrato findava-se, sem possibilidade de renovação, haja vista a natureza precária.

Até hoje existem municípios contratando de forma diferente, sem uma lógica de um regramento único fixando os termos para tais contratações. A cabo disso, vários políticos foram alijados da vida pública, eis que eram obrigados a manter os contratos, não tinham como escapar, pois a política de endemias exige continuidade e contrataram seguindo uma orientação jurídica dada à época, depois foram apenados por entendimento diverso daquele que ele seguiu, em ações propostas pelos órgãos representantes do Ministério Público e até punições advindas das interpretações dos Tribunais de Contas dos Estados.

As irregularidades são as mais variadas possíveis, mas todas ensejadas por não existir, em vigor, uma legislação objetiva acerca da matéria, que é a contratação desses prestadores de serviço temporários, para atender convênios firmados por prefeituras com o governo Federal, visando o atendimento de saúde e endemias.

Decisão do TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO reconhecendo a validade da parceria entre o ente público e uma OSCIP:

“(...) Nesse diapasão, o mero repasse de verbas, por meio de convênio, para a Organização Social de Interesse Público, para a contratação de trabalhadores objetivando a promoção de projeto de saúde, não configura intervenção ou atuação econômica do Estado, mas implementação dos direitos fundamentais sociais, que se erigem em escopos precípuos da nação, daí porque não se há de falar na responsabilidade solidária ou subsidiária do Município. Do fato de o convênio ou o termo de parceria não se confundirem com contrato administrativo, não se há de falar em terceirização de serviços, tampouco em responsabilização subsidiária, nos moldes da Súmula nº 331 do TST, tendo em vista que houve a celebração de acordo de vontades entre o Município e a entidade privada, com escopo no fomento de atividades de utilidade pública”.

Vejamos as decisões acerca da necessidade ou desnecessidade da realização de licitação para a contratação de OSCIP´s, que gerou muitas das ações propostas pelos órgãos da Justiça:

embora seja bastante recomendável a instauração desse procedimento - que privilegia os princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade -, não há como exigir que os gestores públicos promovam licitação para selecionar Oscips, visto que o ordenamento jurídico não traz esse tipo de mandamento”.  (TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO – TCU - Acórdão n.º 1006/2011-Plenário, TC-019.538/2006-9, rel. Min. Ubiratan Aguiar, 20.04.2011.).

Em sentido inverso, temos uma decisão do TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL afirmando da necessidade da realização de licitação:

“4. Os documentos acostados aos autos demonstram que além de não ter havido licitação, não restou comprovada a existência de processo administrativo acerca da inexigibilidade de licitação. 5. A dispensa indevida de licitação implica em violação aos princípios da administração pública importando na prática de ato improbo (art. 10, VIII, da Lei de Improbidade Administrativa). (Segunda Turma, AC 541968/SE, Relator: Des. Federal Walter Nunes da Silva Júnior, convocado, 17/07/2012, publicação. DJE: 19/07/2012, pág. 481, decisão unânime)”.

Assim, por longo período, ocorreram as contratações pelo Poder Público, dos chamados agentes de endemia, que trabalhavam sem qualquer treinamento ou aperfeiçoamento, haja vista a instabilidade dos contratos, que eram contratos curtos e precários, trabalhavam sem a expertise que só o Governo Federal detinha e não foi repassada aos entes municipais, ao findar as atividades da SUCAM. Uma confusão sem forma de ser resolvida.

E as condições de indefinição perduram até a presente data, mesmo diante dessa enorme crise, em profunda pesquisa na internet, não observamos nenhuma voz clamando que se regulamente urgentemente a forma de contratação dos agentes responsáveis por combater o aedes aegypti, que exista uma carreira no serviço público para esses verdadeiros servidores, pois não existe campanha emergencial que dê cabo dessa situação que tem tudo para durar um longo tempo. O problema do combate ao aedes exige políticas públicas sérias, permanentes e que não dê só resultado da mídia, mas que possa perdurar e ter continuidade com responsabilidade.

A coisa é mais séria do que se pode imaginar e a inação dos governos, dos órgãos de controle, do próprio Ministério Público, pode significar o agravamento do quadro atual, que já é, por deveras, muito sério.

Parafraseando finalmente, ou o Brasil regulamenta a contratação dos agentes que combaterão o aedes ou o aedes vai acabar com o Brasil.

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