Ou o Brasil acaba com a saúva ou
a saúva acaba com o Brasil. A frase da saúva é atribuída a Auguste de
Saint-Hilaire, naturalista e biólogo francês, que visitou e percorreu nosso
país alguns séculos atrás. Segundo ele, ao retornar à França, o maior problema
do país era a formiga conhecida como saúva, grande e negra.
Não quero fazer paralelo entre o
que ele disse naqueles tempos com a proliferação do mosquito conhecido como
aedes aegypti, mas com frase que usou as expressões acima para parafrasear
sobre a burocracia e a dificuldade que temos em lidar com nossas leis, a
diversas interpretações e análises dadas a uma mesma norma jurídica. Aliás, que
se abra um parêntesis, advogar com eficiência no Brasil é bem complicado.
Voltemos à frase da saúva, que
foi parafraseada para se afirmar, que “ou o Brasil acaba com a burocracia ou a
burocracia acaba com o Brasil”. Segundo consta, essa frase foi usada numa
campanha do governo, na década de 40.
A histórica jurídica do combate à
dengue nos remete à antiga SUCAM, órgão que resultou da fusão do Departamento
Nacional de Endemias Rurais (DENERu), da Campanha de Erradicação da Malária
(CEM) e da Campanha de Erradicação da Varíola (CEV) e que hoje faz parte da
FUNASA.
A SUCAM era, em suma, um órgão
público Federal, que atuava junto aos municípios brasileiros, onde, seus
representantes cuidavam das campanhas de combate a endemias. Eles foram
esvaziados e os seus serviços foram passados, in continenti, para as
municipalidades. Na época não existiu preocupação, por parte do Governo Federal,
no início do novo século (ano de 2000), de repassar às prefeituras, a expertise
no trato com o combate a essas verdadeiras pragas urbanas.
Sou testemunha da ocorrência
desse desmonte da SUCAM e da entrega, sem qualquer critério, de suas antigas
funções, aos municípios, que não detinham expertise, nem recursos para tocar
esses projetos.
A bem da verdade, ato seguido, o
Governo Federal, após muitas e intensas brigas, estabeleceu, com as
municipalidades, os primeiros convênios para implantação dos programas
municipais de combate a endemias. Eram convênios que estabeleciam, na mesma
época, a criação dos programas denominados Médicos de Família, hoje chamados de
Estratégia de Família ou algo parecido. Esses convênios foram firmados com a
determinação, às prefeituras, para que elas contratassem, de forma temporária,
os prestadores de serviço que atuariam no combate às endemias, sem qualquer
critério ou obrigatoriedade de preparação ou requisito técnico.
Em apertada síntese, o Governo
Federal livrou-se do combate às endemias e transferiu, como vem transferindo há
vários anos, suas responsabilidades para Estados e municípios brasileiros.
Algumas variantes jurídicas
precisam ser anotadas, para chegarmos ao ponto principal. Primeiro: os
convênios estabeleciam que os trabalhadores deveriam ser contratados para
atuação temporária, devendo os mesmos receberem a remuneração com base nos
valores dos respectivos convênios. Dificuldades imensas para contratação
temporária. Isso porque a Constituição Federal prevê a contratação temporária
para casos de curta duração. Será que o governo imaginou algum dia que o
combate às endemias seria de curta duração?
Com certeza que sim, pois esses
convênios eram renovados ano a ano e nenhuma prefeitura, em sã consciência,
devidamente assessorada juridicamente, cometeria o erro de contratar
trabalhadores sem a garantia do repasse dos valores no final do mês. O risco
era o convênio não ser renovado e o quadro com os servidores, que já teriam
inúmeros direitos, ficar ocioso.
Nessa mesma época entrou em vigor
a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, que limitou os gastos dos governos em
percentuais sobre a suas receitas. O segundo dilema surgiu: como contratar
servidores efetivos e majorar as folhas de pagamento? Sendo que na verdade,
esses servidores estariam atrelados a um convênio excepcional que não se sabia
o tempo que durariam.
A terceira dúvida era a seguinte:
os gastos de pessoal com esses agentes deveriam constar dos percentuais da lei
de responsabilidade fiscal para cálculo dos gastos com pessoal?
Por mais que queira parecer que
os gestores municipais são incompetentes e corruptos, no Brasil tivemos e temos
bons gestores, sempre preocupados com a situação de suas contas e o fortalecimento
de seus municípios. Vi gente desesperada diante desse dilema. Não sei precisar
por quanto tempo, mas muitos municípios não tinham equipes de combate a
endemias montadas por dificuldades na contratação desse pessoal. E quando
tinham, eram despreparadas, sem equipamentos e sem a menor liderança.
E o complicador maior no caso,
eram os desentendimentos entre os fiscais da lei, especialmente os órgãos do
Ministério Público (Estaduais de Tutela Coletiva, Federal, e do Trabalho), bem
como, o desentendimento reinante entre a Justiça e os Tribunais de Contas. Numa
época, apenas para exemplificar, haviam entendimentos diferentes desses órgãos
de controle acerca da forma de contratação desse pessoal tão importante, como
verificamos agora na hora da emergência e do caos.
Enfrentando essas enormes
dificuldades, alguns municípios optaram por contratar os serviços por meio de
organizações não-governamentais, no início foram as cooperativas, depois as
OSCIP´s e hoje, muitos contratam por meio das OS´s. Essas empresas passaram a
ser chamadas de terceiro setor e a jurisprudência nos tribunais é das mais
fartas e díspares possíveis.
Anote-se, ainda, que algumas
prefeituras optaram por contratar via concurso público, com as dificuldades
geradas por alguns convênios que estabeleciam obrigatoriedade do candidato
residir no bairro em que fosse trabalhar, especialmente para o programa Médicos
de Família.
Alguns adotaram a contratação
direta, via processo seletivo, cujo regramento brasileiro é por demais pífio,
gerando inúmeras dúvidas, ações de improbidade e toda espécie de dificuldade
possível.
Essa modalidade de contratação
temporária não era permitida para longos períodos, segundo o entendimento de
alguns tribunais. Dessa forma, era impossível o contratado ser treinado ou
adquirir experiência, pois ficam nos quadros públicos por no máximo 2 anos. E
quando essa experiência, esse investimento no capital humano com treinamento
ocorria, o contrato findava-se, sem possibilidade de renovação, haja vista a
natureza precária.
Até hoje existem municípios
contratando de forma diferente, sem uma lógica de um regramento único fixando
os termos para tais contratações. A cabo disso, vários políticos foram alijados
da vida pública, eis que eram obrigados a manter os contratos, não tinham como
escapar, pois a política de endemias exige continuidade e contrataram seguindo
uma orientação jurídica dada à época, depois foram apenados por entendimento
diverso daquele que ele seguiu, em ações propostas pelos órgãos representantes do
Ministério Público e até punições advindas das interpretações dos Tribunais de
Contas dos Estados.
As irregularidades são as mais
variadas possíveis, mas todas ensejadas por não existir, em vigor, uma
legislação objetiva acerca da matéria, que é a contratação desses prestadores
de serviço temporários, para atender convênios firmados por prefeituras com o
governo Federal, visando o atendimento de saúde e endemias.
Decisão do TRIBUNAL SUPERIOR DO
TRABALHO reconhecendo a validade da parceria entre o ente público e uma OSCIP:
“(...) Nesse diapasão, o mero repasse de verbas, por meio de convênio,
para a Organização Social de Interesse Público, para a contratação
de trabalhadores objetivando a promoção de projeto de saúde, não configura
intervenção ou atuação econômica do Estado, mas implementação dos direitos
fundamentais sociais, que se erigem em escopos precípuos da nação, daí porque
não se há de falar na responsabilidade solidária ou subsidiária do Município.
Do fato de o convênio ou o termo de parceria não se confundirem com contrato
administrativo, não se há de falar em terceirização de serviços, tampouco em
responsabilização subsidiária, nos moldes da Súmula nº 331 do TST, tendo em
vista que houve a celebração de acordo de vontades entre o Município e a
entidade privada, com escopo no fomento de atividades de utilidade pública”.
Vejamos as decisões acerca da
necessidade ou desnecessidade da realização de licitação para a contratação de
OSCIP´s, que gerou muitas das ações propostas pelos órgãos da Justiça:
“embora seja bastante recomendável a instauração desse
procedimento - que privilegia os princípios constitucionais da moralidade e da
impessoalidade -, não há como exigir que os gestores públicos promovam
licitação para selecionar Oscips, visto que o ordenamento jurídico não traz
esse tipo de mandamento”. (TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO – TCU - Acórdão
n.º 1006/2011-Plenário, TC-019.538/2006-9, rel. Min. Ubiratan Aguiar,
20.04.2011.).
Em sentido inverso, temos uma
decisão do TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL afirmando da necessidade da realização de
licitação:
“4. Os documentos acostados aos autos demonstram que além de não ter
havido licitação, não restou comprovada a existência de processo administrativo
acerca da inexigibilidade de licitação. 5. A dispensa indevida de
licitação implica em violação aos princípios da administração pública
importando na prática de ato improbo (art. 10, VIII, da Lei de Improbidade
Administrativa). (Segunda Turma, AC 541968/SE, Relator: Des. Federal Walter
Nunes da Silva Júnior, convocado, 17/07/2012, publicação. DJE: 19/07/2012, pág.
481, decisão unânime)”.
Assim, por longo período,
ocorreram as contratações pelo Poder Público, dos chamados agentes de endemia,
que trabalhavam sem qualquer treinamento ou aperfeiçoamento, haja vista a
instabilidade dos contratos, que eram contratos curtos e precários, trabalhavam
sem a expertise que só o Governo Federal detinha e não foi repassada aos entes
municipais, ao findar as atividades da SUCAM. Uma confusão sem forma de ser
resolvida.
E as condições de indefinição
perduram até a presente data, mesmo diante dessa enorme crise, em profunda
pesquisa na internet, não observamos nenhuma voz clamando que se regulamente
urgentemente a forma de contratação dos agentes responsáveis por combater o
aedes aegypti, que exista uma carreira no serviço público para esses
verdadeiros servidores, pois não existe campanha emergencial que dê cabo dessa
situação que tem tudo para durar um longo tempo. O problema do combate ao aedes
exige políticas públicas sérias, permanentes e que não dê só resultado da
mídia, mas que possa perdurar e ter continuidade com responsabilidade.
A coisa é mais séria do que se
pode imaginar e a inação dos governos, dos órgãos de controle, do próprio
Ministério Público, pode significar o agravamento do quadro atual, que já é,
por deveras, muito sério.
Parafraseando finalmente, ou o
Brasil regulamenta a contratação dos agentes que combaterão o aedes ou o aedes
vai acabar com o Brasil.
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