sexta-feira, 13 de maio de 2016

O problema da emergência ficta e a burla no processo de contratação pelo Poder Público - José Souto Tostes

No estudo das licitações públicas uma preocupação que ainda não recebe grande atenção dos tribunais de contas é o que a doutrina tem chamado de emergência ficta ou fabricada. Que na realidade é o gestor beneficiar-se de sua própria torpeza ao atrasar a realização de uma contratação com intuito de criar a situação emergencial e contratar dispensando a licitação.
Essa ação vem criando vários problemas para os gestores sérios do Estado brasileiro, acabando por desacreditar quando a situação realmente é emergencial, atravancando projetos e obrigando os órgãos de controle a utilizarem-se de inúmeros artifícios legais que dificultem a contratação diante de um quadro verdadeiro de urgência ou necessidade do Estado agir com rapidez.
Primeiro passo dessa análise é vislumbrar o que é uma situação emergencial. Segundo os dicionários, os significados de emergência são ocorrência de perigo, situação crítica, incidente e imprevisto. O administrador deve perguntar, diante da ocorrência, se aquele fato que gerou a necessidade da contratação adveio de uma ocorrência de perigo, de uma situação crítica ou de um ato imprevisto.
Desses sinônimos, vamos nos ater a um único, que é o imprevisto. Analisar a situação sob a ótica da imprevisibilidade torna a caracterização ou não caracterização da situação como capaz de enquadramento no disposto no artigo 24, inciso IV da Lei de Licitações.
Uma análise superficial nos leva à situação do pneu de uma ambulância que está “careca” e precisando de imediata substituição. É uma situação emergencial?
Um analista incauto diria que sim, pois é impossível uma ambulância funcionar ou transitar sem o pneu em bom estado. O mesmo aplica-se aos demais veículos, mas a ambulância socorre vidas, atende acidentes e pessoas doentes. Em tese, a imprescindibilidade da ambulância é maior.
Mas a resposta jurídica é não. Uma ambulância parada por falta de pneus não caracteriza situação emergencial, por mais que ela seja necessária e sua utilização urgente.
O gestor tem que planejar, tem que ter consciência, desde que ele adquiriu aquele veículo, que a troca de pneus é necessária, assim como a manutenção, o reparo, troca de peças e consertos dos mais variados, inclusive a revisão periódica.
Resumindo: um pneu careca é fato previsível. Essa ambulância parada por falta de pneus ou manutenção é o que chamamos de emergência ficta. Ela não é real!
Agora tomemos uma situação mais complexa. A legislação de resíduos sólidos fixou diversos prazos de adequação dos municípios brasileiros à legislação de interesse ambiental no tratamento dado ao lixo urbano, inclusive. Esse calendário era de conhecimento público, a legislação foi objeto de ampla discussão, análise e divulgada de forma geral. Os órgãos ambientais promoveram palestras, fóruns, discussões, debates e intensificaram campanhas em torno das necessidades para a adequação do Estado (leia-se União, Estados de Municípios) às novas normas.
Enquanto isso, o Estado dormiu, não promoveu as obras necessárias à adequação à novel regra jurídica. O tratamento a ser dado ao lixo urbano carecia de adaptações desde a coleta até o destino final.
Pergunta que se faz: sendo o cronograma uma legislação brasileira de conhecimento público e prévio, pode o gestor alegar emergência para a contratação dessas obras/projetos para adequação aos termos da lei, evitando o descumprimento dos prazos estabelecidos?
Não. Mesmo advindo de lei, ocorreu tempo suficiente entre a publicação da legislação e o cronograma a ser obedecido, capaz do gestor planejar, contratar e executar as obras e projetos necessários ao atendimento da norma.
Beneficiar da própria torpeza é utilizar-se do prazo legal que foi concedido previamente para burlar a lei de licitações.
O mesmo pode-se dizer das compras de medicamentos para atendimento da população, muitas das vezes são de uso comum, que as farmácias das unidades de saúde deveriam dispor. Comprar tais medicamentos dispensando a licitação é burla à lei de licitações. O administrador tem ciência de que pode enfrentar ações desse porte. Excetua-se aqui aqueles medicamentos incomuns ou tratamentos específicos, que fogem do trivial. E a excepcionalidade deve restar devidamente comprovada, com farta documentação e informação técnica, que balize a impossibilidade de previsão.
Assim sendo, a conclusão que se chega é que o planejamento das ações governamentais, das necessidades dos administrados e o funcionamento da máquina pública deve ser enfim levado a sério. O país precisa repensar seus projetos, manter um quadro de servidores que agem com eficiência, seriedade e profundo estudo das necessidades estatais é mais que urgente. O despreparo dos agentes públicos, efetivos e principalmente ocupantes de cargo de confiança deve ser política pública, vista com critério e constar do projeto dos atuais e futuros governantes.
Administração pública é coisa séria, não é para amadores ou para quem vem para o setor visando fazer laboratório, como se o serviço público fosse uma espécie de trampolim para alguma coisa. Os interesses dos administrados devem ser colocados em primeiro lugar. O interesse pessoal do administrador, em contrapartida, deve ser secundário.

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